O livro dos abraços

domingo, 2 de novembro de 2014

 


Galeano* decerto já foi adulto, talvez um dia. Conforme o tempo passa, vai virando menino. Cada dia novo leva uma dor embora e dá em troca, de presente, um sonho. Cada sonho é de uma cor: cor de margarida, cor de rã, cor de lenço, cor de tomate... E ali, no sonho colorido, ele pode morar, brincando de acender e apagar a lua, ou então de engolir o vento, ao mesmo tempo em que o assopra. Quando o vento vira língua de fogo, vira também um menino, e caminha com os pezinhos descalços, pela rua de cata-ventos, bem devagarzinho. Os cata-ventos ficam tontos, de tão lento e tão veloz que vai o ventinho. E, assim, eles começam também a brincar, e fazem carinho, dando a mão uns aos outros, pra sentir cócegas quando passa o vento pelos seus espacinhos. Dia desses, o sonho cor de uva verde sobrevoou um canarinho, que estava irritado pois sua meia não conversava com sua luva. A luva dizia: vou no lado esquerdo, e a meia não escutava nada. A meia só dizia: vou no lado direito, e a luva não escutava nada. Não podiam conversar, e o canarinho chamou a bicicleta para levar as duas a passear.  Andaram pelo lago e esqueceram qual era o lado certo, o lado errado, não havia mais lado, só lago. Embaixo do lago, morava uma moça linda, vestida de preto com lilás, com a boca bem vermelha e, com um olho bem verde, e um olho bem preto. Os dois olhos eram muito sérios e só recebiam segredos. Segredos são peixes que entram nos olhos da moça e depois não querem mais sair. Ficam ali a dançar uma música tão alta, que lá embaixo do lago ninguém escuta, só dança. Dentro da boca vermelha vive uma princesa feita de papel e de jornal, com muitas letrinhas. Quando bate sol na princesa, ela voa em cima de uma conchinha, e esbarra no menino Galeano, que já foi adulto, talvez um dia. Se ele está triste, ou com alguma dor, ela inventa uma palavra, com várias letrinhas, que vira tatuagem no seu corpo de princesinha. Depois disso, ela vai de volta para o lago, deitar dentro da boca vermelha da moça de vestido preto e lilás. Assim, o menino pode de novo brincar nos sonhos coloridos, dormir e acordar alegre, ou então em paz.

* Homenagem ao Eduardo Galeano, que me acordou os sonhos, num dia nubladinho. Nota: título e capa deste texto: "O livro dos Abraços" (Galeano. Eduardo. O livro dos abraços; trad. Eric Nepomuceno. 2 ed. Porto Alegre: L &PM, 2007).

desobediência

terça-feira, 11 de março de 2014

o sonho
Obra: "O sonho" - P. Picasso (1932)


Parti minha alma e larguei pelo mundo
Pedi aos pedaços que não mais voltassem
Mas poucos, de todos, ouviram-me a voz
E a vontade desobediente
Uniu todos eles.

(Rascunhos, 2004)

o rei e o bufão

quinta-feira, 19 de setembro de 2013
- Ha ha ha ha!
o pançudo rei esquece
e gargalha animadamente

feita a troça, 
o bufão (bobo da corte), 
meio vesgo, meio manco, 
meio feio, 
meio preto, meio rosa, 
meio branco,

lança meio sorriso,
- cúmplice - 
da onipotente 
imbecilidade alheia

e o rei ri,
ri!
quase chora de rir.

e esquece
que as mazelas expostas,
a galhofa,
são nada menos que o ridículo de si.

"o poder está nas mãos dos tolos"
encerra, sério, o bobo

e o rei, 
do alto do sóbrio trono, 

apenas e simplesmente 
ri!

---

Obra: "The voices of the spirit." Monica Zúñiga
Obra: Atribuído a  Maître de 1537.
nota da autora: para manter o nível artístico das imagens, desisti da ideia de colocar uma foto dos estimados ministros do STF, ou de alguns "senhores" (reis) sob julgamento recente, de nosso país. já basta ter que acompanhar todo o espetáculo circense pelas mídias convencionais. assim, ficam de brinde, ilustrações do bobo da corte e da "loucura contemporânea" e colorida - mais como autorretrato em tom de esperança (em quê? ainda não sei, não consigo rir).





velò-veloz ou bicicletar

quarta-feira, 11 de setembro de 2013
Obra: Da galeria de Oleg Tchoubakov
Obra: Da galeria de Oleg Tchoubakov
graciosa adaga,
corta caminhos
e dança na estrada,
veloz.

canta comigo quando vejo cores no céu!

carros passam,
faróis,

e se vão,
assim como nós.

manhãzinha,
ou
madrugada,
silente e em paz,
me acompanha, 
e vem...
tecendo tênues espirais
em rotações quebrando o vento

asfalto gelado
neblina que cerra
e estamos ali
unidas em pacto, no impacto
de outra pedalada.

rostos estranhos
tornam-se névoa,
parceiros da busca
de um novo destino

- veja lá;
- veja a lua;
 - veja vênus;

- veja a dona, que, com pressa,
atravessa, sem notar que aquela
foi um dia uma rua sua...

flores, aves,
- fumaça - 
fios, pedras,
- vitrines - 
folhas, sombras, 
- semáforos - 
água, sol,
- ruído - 
chuva, orvalho,
- motores - 

não me sinto só
neste mundo estranho,
rodo sobre as rodas
como fossem sonhos...


a cidade é nossa!


Paradoxo do deixar

quinta-feira, 5 de setembro de 2013


some a nossa cor hoje do céu, meu bem
Obra: Dia de Outono  - Isaac Levitan
voa a primavera em nosso corpo
e floresce o que restou da alma

gavetas cheias de segredos
anseiam o despertar da manhã

"você nunca andará sozinho..."
- dizem eles:
os ramos, 
as folhas,
as aves,
a música e o beijo.

sussurros:
hora de partir,
deixar-se andar

não se despeça
perda não há
já que nunca
nada é permanente,
nada é possuído.






Corre!

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

- não há tempo, corra!
(passos ligeiros e desesperados se ouvem)

e a chuva continua a cair, 
indiferente, 
quase maligna e sacana
a rir do pobre vivente
que corre, corre, corre...

contra o tempo, 
contra a morte, 
contra a vida, 
contra a própria sorte

seus olhos não mais vêem
nem brincam, nem passeiam, 
apenas seguem os passos...

sua boca está doce, doce demais
que chega a corroer
pois o gosto da vida apressada
é como açúcar, pobre e podre

suas mãos... coitadas!
aleijadas, alijadas,
com toques imprecisos
e perdidos em névoa
sabem da pele
e do calor quase nada

corre, corre, corre
e enquanto corre
esquece o sabor do vento
e esbarra no Tempo:

- olá, senhor! que prazer!
(diz o Tempo)
- cai assustado, ajoelhado
e nem pode responder,
os lábios trêmulos,
olhos fissurados,
e saliva doce, envenenada,
deixam-no prostrado -

- olá senhor! bom lhe ver! (ri o Tempo)
corra, corra, e deixe-me rir de você! 
(ri forte o Tempo)

e ele corre...







visão da lua

sexta-feira, 23 de agosto de 2013
visão da lua
(um poema em prosa às mulheres...)

o feminino se esconde
não é para todos e nem é a todo o momento que ele se revela
precisa de uns ingredientes mágicos
pois é profundo e sensível
alegre e criativo
só que não se desperdiça à toa
preza pela graciosa acolhida de corações sinceros,
libertos,
que possam conquistá-lo e respirá-lo,
ainda que apenas por um instante

mas é fácil, não complicado
abrir-se e aguardar sua chegada
...
junto com a lua, o feminino vem,
tal como ela
- cheia, nova, crescente, minguante - 
mutável e constante...

silenciosamente, 
se desvela,

basta crer, e esperar, sem ansiar
só esperar...

tente lembrar aqueles momentos
em que você permitiu sua chegada
havia neles alguns ingredientes, creio...

talvez um pouco de mistério, 
uma colher cheia de alegria, 
umas pitadas de cumplicidade, 
um punhado de intimidade,
certa sensualidade bem dosada
e quase obscena profundidade...

algo mais de indefinível e sem palavras, 
como uma dança
um acorde
como um poema, 
um passo,
um vôo, gostoso,
uma súbita e visceral gargalhada...
...
outras vezes, foi só imensidão,
como um céu escuro e infinito
velando o que restou do dia...
...
é...
é bem assim...

quando você se lembra dele
e olha alto o céu
ele aparece, de mansinho, 
pois a todo o tempo está lá

e, tal como a lua
lhe acompanha e caminha
segue seu ciclo

basta você ter olhos de ver, 
e corações de sentir

que ele vibra, e toca 
o seu canto almado - cante jondo
e toma o seu ser

Imagem: "Dancer" (Gustav Klimt)