Trilogia: ficção de um amor

sábado, 15 de agosto de 2009
Ávida

I.

Toda noite em que chove
Ouso navegar os lábios nos teus cabelos.
Cruzo o mar dos infelizes e aporto na tua pele.
As gotas são todas tuas, sou eu, são minhas
Mas quase distraidamente, tu as sorves
entre os dentes brancos.


Se eu encontrasse todas as coisas no teu corpo
Sem que precisasse um riso frouxo, um vinho,
um copo, um pouco de sal, do mar, de manhã
Ah... eu não seria tua, seria tu!

Mas o teu corpo traria nele minha alma,
Sem passaporte, sem condolências,
Sem paciência, sem tempo ou pressa.
E levaríamos um pouco das dores do mundo,
Das fórmulas e da alquimia etérea
Trovaríamos todas as palavras
Escritas, lidas, faladas, ouvidas
E cantaríamos o silêncio dos loucos.

Ávida por ti, procuro a mim.
E se encontro, morro.

...

Desapaixonado

II.

Teus olhos são tão remotos
que apóio meus cotovelos
sobre eles
como quem se debruça
sobre uma mesa
ou balcão de um bar
numa tarde de domingo
sem graça e desinteressante.

São olhos chatos, entediantes
esses olhos teus
que me falta ânimo ao fitá-los
que perco a fome, a inspiração
e sinto sono
são dois comprimidos
pílulas,
anfetaminas
mas não os quero,
nunca tive insônia

Assim são esses teus olhos
olhos pirão-sem-sal,
olhos estepe furado,
olhos dia-sem-vento,
sem olhar, sem paixão,
sem gosto, cor, odor,
sem coisa alguma

Olhos...
isso para não falar do resto.

...

Pirata saqueado

III.
Trouxe em mim todas as ilhas e terras
As devastadas, as intocadas, as perecidas e as serenas.
Travei longas jornadas, piratas
Pra encontrar o dorso da tua mão e tocar nele meu dedo.

Saqueei os navios inimigos,
Roubei, matei, venci
E, ao cair do dia,
Só me via derrotado
Por ter nada e desejar tudo
Por ser mudo
Mas ouvir teu sussuro.

Nessas últimas noites,
Faltou pouco e quase sucumbi.
Mas lembrei das dores dos poetas,
Dos bandidos, dos banidos
E da beleza da espera,
Da ternura da tristeza
E do relento, do vazio atento
Que é a saudade.

E vivi por ti, por teu encontro.
Mas ao te ver, já não eras minha
Tocavas a mão de outro.

E, nesse dia, sim,
Tornei-me trapo,
Tornei-me homem,
Tornei-me morto.

Ilustração: A moça com brinco de pérola - Johannes Vermeer